O ROSTO DO PAI 

 


MISTÉRIO DE DEUS CONTEMPLADO SOBRE A METÁFORA DA PATERNIDADE DIVINA

 

P. Silvio José Báez, o.c.d.

Roma

 

Neste ano somos convidados a aprofundar, a meditar, a contemplar,  o rosto de Deus, o mistério de Deus sobre a metáfora teológica, talvez a mais bela, a mais rica, a metáfora do Pai. Deus é  Pai!  Para nós o Pai de Nosso Senhor JesusCristo. Que pensou em nós desde a  eternidade, como seus filhos e nos fez filhos verdadeiros no seu Filho Jesus.

Tem  uma dupla continuidade entre o Pai de Israel e o Pai de Jesus. Quando o Senhor nos Evangelhos fala de seu Pai, fala do Pai de Israel. Este Pai misericordioso e humilde que criou seu povo, que o  salvou, e o  perdoou  continuamente, e que, na plenitude dos tempos  enviou o seu Filho.

No A.T. tem uma imagem para falar de Israel, é a imagem da vinha. A vinha no Antigo Testamento é um símbolo, uma imagem para falar do povo. O Senhor  plantou uma vinha. Esta vinha é Israel. No Evangelho Jesus diz: EU SOU A VERDADEIRA VIDEIRA E VOCÊS OS RAMOS. Com isto, entre Jesus e Israel existe uma continuidade. É Ele o verdadeiro Israel, o verdadeiro Filho. Porém, o Pai continua sendo o agricultor.

Contemplaremos o rosto paterno de Deus na primeira Aliança, no Antigo Testamento. O Cardeal Martini, na sua cata pastoral (1998-1999), diz que, para nós cristãos, o primeiro espelho em  devemos aprender o verdadeiro rosto do Pai é a Bíblia dos Hebreus. Aquela que a nossa Igreja recebeu com humildade e gratidão como seu primeiro livro sagrado.

É a primeira Aliança, a primeira testemunhança do verdadeiro rosto do Deus, válida ainda hoje para nós cristãos. Rezando e meditando com a Bíblia, caminharemos em direção ao Pai de todos. O primeiro espelho em que devemos aprender a ler o verdadeiro rosto do Pai – a Bíblia dos Hebreus.

Devemos ler na história do  povo hebraico, a contínua presença misteriosa do rosto de Deus. E hoje, como no futuro, porque Deus ama ainda hoje, como no princípio, estes seus filhos, na fidelidade à Aliança com eles não mais revogada. Por meio deles, para louvarem o seu nome, em cada parte da terra; então, ainda hoje, reforça o seu chamado. Somos chamados por Jesus para contemplar neste Pai de Israel, o seu Pai, o Pai da humanidade. Aquele que te quer filho/a no Filho.

Nesta primeira meditação faremos um pequeno, breve percurso, sobre a imagem paterna no Antigo Testamento. Talvez a primeira coisa que devemos dizer, é que não é fácil falar do mistério de Deus. É verdade, nós somos habituados a dizer que Deus é nosso Pai, Deus é o Pai de Jesus. Porém, Deus permanece sempre um mistério. Como dizia Santo Tomás, “de Deus não possamos saber aquilo que é, mas somente aquilo que não é”. Podemos afirmar que está presente, mas não podemos dizer quem é. Deus é sempre Outro em nosso pensamento. Aquilo que nós podemos entender, compreender de Deus, não é Deus.

Deus é sempre mais! Deus é mistério, por isto na tradição hebraica, Deus é inominável. Na tradição hebraica como vocês sabem, existe a proibição de pronunciar o Nome, o Nome por excelência. Uma proibição que nasce historicamente da preocupação, em tempo provavelmente de decadência religiosa, de salvaguardar a santidade de Deus, porque nominar alguém é, em um certo sentido, dominá-lo. Por isso não se pronuncia o nome de Deus.

Uma outra explicação muito mais teológica  em relação ao silêncio do nome de Deus, é que Deus não é ainda plenamente revelado. O seu nome não pronunciado é um sinal de falta, isto é, não conhecemos totalmente Deus. Caminhamos em direção ao pleno conhecimento. É verdade, Deus se  revelou em Jesus Cristo, porém é escondido ainda. É revelado como Pai em Jesus Cristo, porém permanece sempre mistério. Mistério escondido e inominável. Somente no fim dos tempos, como disse o Apocalipse, o seu nome será plenamente revelado, plenamente conhecido (Ap 2,17). O nome que somente Ele conhece, diz o Apocalipse, e o  Senhor o revelará aos seu fiéis, no fim.

Então, Deus permanece mistério, porém, na Escritura, o mistério deve ser dito. Mistério não é alguma coisa de escondido, alguma coisa que deve permanecer em segredo. Deus é um mistério que deve ser dito! Não silencioso!  Deve ser comunicado, e não escondido. Portanto, esta é a grande problemática não somente da Teologia que sistematicamente deve dizer Deus, mas também a problemática da vida espiritual. Nós conhecemos o Senhor, mas não o conhecemos ainda plenamente. Deus é nosso Pai, porém não se revelou totalmente.

Uma forma privilegiada de dizer o mistério, de pronunciar o  nome de Deus é dizer Pai. Talvez a metáfora, porque é uma metáfora. A metáfora mais bela, mais rica teologicamente, para dizer o mistério. Porque começo com esta introdução? Porque tem um grande risco quando se fala de Deus como Pai. Porque podemos pensar Deus como Pai, como uma simples projeção da experiência que temos de chamar na terra alguém de pai e mãe. Porém, a paternidade divina é uma revelação do alto. Não é uma simples projeção da nossa experiência de paternidade ou mesmo de maternidade.

É alguma coisa a mais, é uma metáfora a paternidade divina. É uma tentativa humana para dizer Deus num certo modo. Porém, também a metáfora da paternidade, deve deixar um espaço ao mistério. É verdade, Deus fala e temos escutado a voz do Pai no Evangelho, porém temos percebido também o seu silêncio. Jesus Cristo entrega o seu Espírito sobre a cruz no abissal silêncio de Deus Pai. Eis aqui, um Deus que se revela ainda quando distante, como mistério permanece. Necessitamos contemplar o Pai sobre esta perspectiva. Da revelação e do escondimento, para não manipularmos o nome de Deus, para não manipularmos nem menos a metáfora da paternidade.

Portanto, a figura do Pai na Escritura, segundo a Bíblia,  é toda uma novidade. A respeito das imagens falsas que tantas vezes temos podido fazer. Por exemplo, Deus não é um Pai déspota. Deus não é um Pai que faz concorrência ao homem e a sua liberdade. Então, como conhecer o verdadeiro rosto do Pai? Não tem outro caminho do que tornar à Bíblia, tornar à Escritura e escutar a Palavra em que o Senhor se revela como o Pai de Israel, como o Pai de Jesus e Pai de todos.

Obviamente quando nós lemos as páginas do Antigo Testamento, lemos como cristãos. E para nós o Pai de Israel é o Pai de Jesus e o Pai de todos. Porém, aquela primeira revelação é uma escola de fé. E necessitamos contemplar com fé e com amor, porque Deus assim quis se revelar na primeira Aliança. Para nós cristãos, tudo tem sua origem no Pai. O cristão sabe que recebe tudo do Pai, é a nascente original, é a origem. O seio materno, é a origem de tudo! E não somente a fonte originária, mas também a fonte permanente de vida e de bondade.

Na carta de Tiago 1,17 lemos esta frase, que é belíssima: “Qualquer dom precioso e qualquer dádiva perfeita vêm do alto, desce do Pai das luzes, no qual não há fases ou períodos de mudança”. Vejam, nós somos conhecedores de que todo bem vem do alto, vem Dele,  Ele é a nascente de vida e bondade. Por isso, no momento de crise, na experiência da morte, surge em nós uma saudade do Pai, daquela origem, da qual todos nós viemos – o PAI.

O Pai é também a meta final da nossa vida. Nós caminhamos em direção à casa do Pai, disse Jesus em Jo 14,2. Na casa do Pai “onde existem muitas moradas”. Vejam, uma casa ampla onde tem lugar para todos – na casa do Pai. Caminhamos em direção ao Pai. A inteira existência de cada pessoa, ainda que não se conheça, é um retorno ao Pai.

No NT o conhecimento do Pai é graça. É somente Jesus quem concede o conhecimento verdadeiro do Pai. No Evangelho de João, Felipe havia compreendido que na pessoa do Pai, que havia mandado o seu Filho, se encontrava o segredo primordial de todas as coisas. Partindo desta descoberta, tudo o resto se esclarece. E o Pai se é revelado a tal ponto no Filho, que quantos que viram Jesus,  têm encontrado a alegria, a graça de ver o Pai. Através dos traços humanos de um rosto humano, aquele de Jesus de Nazaré, um rosto humano visível,  vemos o Pai invisível. Quem vê Jesus, vê o Pai. É uma graça! Em Lc 10,21-22, a oração de Jesus  quando torna com os discípulos: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai e ninguém conhece quem é o Filho, senão o Pai, e quem é o Pai,  senão  o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. Vejam, a graça de conhecer o Pai!

Agora, leremos alguns textos do Antigo Testamento sobre o Pai de Israel. Como vocês sabem, o AT não fala muito de Deus sobre a metáfora da paternidade. Provavelmente porque queriam evitar o perigo de identificar Deus com alguma divindade do povo estrangeiro, que pensava o seu deus, sua divindade, em chave sensual. Então, Israel  evitou falar de Deus como Pai. São pouquíssimos textos que falam de Deus explicitamente como Pai. Porém, a idéia da paternidade de Israel é fundamental no AT.

 Existe um texto que pode servir de introdução a esta temática de um livro tardio do AT, escrito em grego e portanto, um livro que recolhe toda uma tradição do povo da Bíblia. É o livro da Sabedoria 18,13  - é uma evocação no momento em que o povo sai do Egito. E fala da admiração, do espanto dos egipcianos diante das grandes obras de Deus. Aqueles egipcianos permanecem incrédulos. Com a morte do primogênito, confessaram que este povo é filho de Deus. Deus é Pai, sobretudo em relação ao povo. Segundo este texto da  Sabedoria, a ação libertadora de Deus no momento do Êxodo, constringia os inimigos de Israel a reconhecerem aquele povo como filho de Deus. Para Israel, isto será sempre uma grandíssima honra. É uma garantia para o futuro, como pelo passado. Ser objeto da proteção e da salvação de Deus do princípio até o fim.

Portando, a paternidade divina no AT é coligada sobretudo ao acontecimento do Êxodo. Deus é Pai de Israel, não pelo fato de Deus ter criado o universo, não por ser o criador de tudo, mas porque libertou o seu povo, ou melhor, porque  criou este povo. É esta a paternidade divina no AT. Uma paternidade que tem como base  um acontecimento histórico. Deus torna-se Pai, porque liberta Israel na história.

Agora desenvolveremos três aspectos da paternidade divina no AT:

1.      Deus é Pai em virtude de uma ação criadora;

2.      Deus é Pai porque assume a missão educativa do seu povo;

3.      Deus é Pai porque agiu com misericórdia no confronto de Israel.

Estes são os três aspectos mais importantes do AT.

 

1.      DEUS É PAI EM VIRTUDE DE UMA AÇÃO CRIADORA                                                                                                

 

 

Como já dissemos, a paternidade divina no AT vem apresentado como o resultado da ação libertadora de Deus no confronto de Israel. Deus criou um povo a tal ponto que quando Israel se distancia de Deus, não é mais Israel. Israel é o povo de Deus! E quando não obedece sua Palavra, quando não escuta mais o seu Deus e segue outros deuses, não é mais Israel. Vejam, Israel se compreende sempre como povo de Deus.

Deus é Pai em virtude de uma ação criadora! Isto significa dizer que antes do Êxodo, Israel não existia. Segundo a terminologia do AT, Israel era casa da escravidão. É verdade, o Egito era um espaço, lugar em que Israel experimentou a bênção. Um povo que crescia (Ex 1). Porém, não era verdadeiramente um povo. O Êxodo apresenta aqueles que chamam de filhos de Israel como “casa da escravidão”. Um povo que não era dono de si mesmo. Era o Faraó que decidia sobre a vida do povo. Israel era um escravo. E portanto, a libertação do Êxodo não é somente uma ação potente, uma ação a mais de Deus, nem menos a mais importante. A saída do Egito é a criação de um povo livre. Deus se revela na história do Êxodo como o Deus capaz de doar a liberdade ao povo. No momento em que o Faraó matava o povo por causa do medo, para não perder o seu direito, o Senhor corre o risco de ser rejeitado, por restituir livre o povo. Israel se transforma em povo livre. Deus doa a existência a Israel. O gerou como Pai. Existe um texto no livro do Êxodo 4,22-23: “Então você dirá ao Faraó: Assim diz Javé: Israel é o meu filho primogênito e eu ordeno a você que deixe sair meu filho para que me sirva. Se você se recusar a deixá-lo partir, eu matarei o filho primogênito de você”.

Vejam, o filho de Javé é Israel e transforma-se livre depois da saída do Egito. Existe um momento importante na história do Êxodo – é a passagem do mar. Aquelas águas que recordam a água originária, a água caótica da criação. São como um ventre materno. Israel deve entrar naquele ventre materno, nas águas do mar, para sair ao espaço da liberdade. A narração fala de um acontecimento vindo na noite. Vejam, Israel nasce como povo livre na manhã, atravessando a água primordial. Aquele ventre materno! E assim Deus cria um povo e o faz passar da escravidão para a liberdade, da morte para a vida.

Esta idéia de Deus que cria um povo é presente também no NT, quando Paulo fala na 2a Carta aos Coríntios, quando fala que os cristãos são nova criatura. Deus Pai nos criou na morte e ressurreição de Jesus. Também somos obra das mãos criadoras de Deus.

No livro do Deuteronômio  32,5-6, Moisés faz uma meditação sobre a história de Israel e diz: “Os filhos degenerados pecaram contra ele,  são uma geração depravada e pervertida. É isso que vocês devolvem a Javé, povo idiota e sem sabedoria? Ele não é o Pai criador de vocês? Ele próprio fez você e o sustentou”. Vejam, Deus se revela Pai criando Israel, doando a este povo a liberdade e a vida. Esta idéia é muito importante, porque cada vez que o povo se encontra em perigo, experimenta a morte, faz apelo aquela obra criadora originária, para obter o intervento benevolente de Deus. Ser recriado. Deus Pai é aquele que doa a vida e a liberdade. Não é o Pai que entra em concorrência com o homem e com a sua liberdade. É Pai porque doa a vida. E quando Israel se distancia do Pai perde a existência, não é mais o povo de Deus. Vejam, o Pai permanece   o ponto de referência de Israel. Israel é filho de Deus na medida que obedece sua Palavra, na medida em que segue os seus caminhos, na medida em que escuta a sua voz. A vida vem doada do Pai. Porém o fato originário, o acontecimento primordial da paternidade divina, permanece sempre um ato de libertação também para nós cristãos. Na Páscoa de Jesus  é revelada a potência criadora, libertadora de Deus, nosso Pai. Devemos pensar a imagem paterna em chave de libertação e de salvação. O Pai é aquele que nos  criou doando-nos a liberdade e a salvação.

 

 

2. DEUS É PAI, PORQUE ASSUME A MISSÃO EDUCATIVA DO SEU POVO.

 

 

Deus assume a missão de educar o seu filho, de fazer crescer o seu povo. Sobretudo a experiência do deserto e o dom da lei, são no AT expressões da paternidade divina. O Senhor acompanha o seu povo, o faz amadurecer, o faz entrar em crise para o fazer crescer. Deus se apresenta no AT como aquele que acompanha o povo, como uma presença providente. É o Pai que providencia tudo que necessita o seu povo em caminho. Também estas são palavras de Moisés ao início, quando o povo se prepara para tomar posse da terra prometida: “Não fiquem aterrorizados, nem tenham medo... No deserto você viu também que Javé seu Deus o carregou, como um homem carrega seu filho, durante o caminho que vocês percorreram, até chegar a este lugar. Apesar disso, ninguém de vocês confiava em Javé, seu Deus. Ele ia na frente de vocês, procurando um lugar para o acampamento: durante a noite, por meio do fogo, para que vocês pudessem enxergar o caminho, e na nuvem durante o dia” (Dt 1,31-33).

 Esta é outra imagem da paternidade muito bela. O Pai que acompanha o povo. A imagem paterna no AT não é a imagem de um Deus estático, de um Deus distante, é a imagem de uma paternidade plena de solicitude, de um Deus que guia, que protege no caminho o seu povo.  É a grande escola da paternidade divina. O Pai que acompanha. É uma paternidade plena de solicitude, desvelamento, pronto a proteger. É um Pai que caminha com o seu povo, que o educa.

Quais as  lições que o Senhor quis dar a Israel no deserto? Quando acompanhava esse povo, o acompanhava como um homem carrega o próprio filho. No deserto, o Pai de Israel impôs condição de pobreza e precariedade, para que o povo compreendesse, reconhecesse que a obediência à Palavra é condição indispensável, suficiente,  para viver. Ele fez o povo entrar em crise. É necessário também pensar o Pai nestes termos. É aquele que prepara situações, que nos faz entrar em crise para purificar nossa imagem de Deus. O receber o alimento por Deus no deserto é uma correção do orgulho de Israel, da sua pretensão  rebelde, de querer fazer as coisas só.

O Senhor ensinou Israel no deserto que deve receber Dele o alimento. Em Dt 8,2: “Lembra-se porém, de todo o caminho que Javé seu Deus fez você percorrer durante quarenta anos no deserto, a fim de humilhar e o colocar à prova, para conhecer suas intenções: será que você iria observar os mandamentos dele ou não?” É  um Deus que toma a sério a missão da paternidade. Não deixa só o povo no deserto. O acompanha, porém para educá-lo, para o fazer crescer no verdadeiro conhecimento de Deus. Ele portanto, te  humilhou, te fez passar  fome. Porque o Pai faz passar  fome, a Israel seu filho? Depois o  nutriu com o maná que nem eles, nem os seus pais o haviam conhecido? Para fazer compreender que o homem não vive somente de pão, mas do que sai da boca do Senhor.

Esta citação  do Deuteronômio é de grande ajuda para interpretar e ler as nossas crises, as nossas provas. Como o Senhor, através das provas da vida nos ensina, nos educa! Coloca em crise a nossa imagem divina, para chegarmos ao verdadeiro conhecimento de Deus.

Em Jo 15,1s lemos: “Eu sou a verdadeira videira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não dá fruto em mim, o Pai o corta. Os ramos que dão fruto, ele os poda para que dêem mais fruto ainda.” É a ação educativa de Deus, que através das crises e provas, revela o seu verdadeiro rosto, nos faz amadurecer na fé e no verdadeiro conhecimento de Deus.  A paternidade  divina não é fria, não é um Deus remoto, distante. É um Deus que toma a sério a vida do seu povo. O profeta Oséias 11,3-4 usa esta mesma idéia:  “E  não há dúvida, fui eu que ensinei Efraim a andar, segurando-o pela mão”. Vejam, um Pai que segura pela mão o seu filho e o ensina a caminhar. Este gesto de segurar a criança mostra a profundidade do afeto paterno. Um Deus vizinho, um Deus cuidadoso, um Deus cheio de ternura, de solicitude no confronto do povo. Vejam, Deus é Pai porque educa o povo, porque acompanha o povo. Deus é Pai porque coloca em crise o povo.

 

 

2.      DEUS  É  PAI  PORQUE  AGIU COM  MISERICÓRDIA

NO  CONFRONTO   COM  ISRAEL

 

 

Um Pai que é misericordioso no confronto de Israel! Temos dito que a relação de paternidade e filiação no AT se compreende somente à luz da Revelação. Toda a história da Aliança no AT é a história da relação entre Deus e Israel, entre o Pai e o seu filho primogênito. O profeta Isaías, no início de seu livro cap.1,2  fala da desilusão de Deus, ao ver o próprio filho que o abandona, não obstante a insistência do seu amor. Vejam, esta humildade do Pai, esta vizinhança, esta ternura da paternidade de Deus Pai no AT é muito rica. Começa assim o livro de Isaías: “Escutem, céus; ouça, ó terra! Javé é quem fala: Eu criei e eduquei filhos, mas eles se revoltaram contra mim”. Vejam, este é o drama da história de Israel, os filhos se rebelam contra seu Pai e o abandonam.

Segundo a legislação do AT, segundo a lei de Israel, o filho rebelde devia morrer, Dt 21,18-21. É interessante porque os profetas jogaram com esta lei. “Se alguém tiver um filho rebelde e incorrigível, que não obedece ao pai e à mãe e não os ouve, nem quando o corrigem, o pai e a mãe o pegarão e o levarão aos anciãos da cidade para ser julgado. E dirão aos anciãos da cidade: ‘Este nosso filho é rebelde e incorrigível: não nos obedece, é devasso e beberrão’. E todos os homens da cidade o apedrejarão até que morra. Desse modo, você eliminará o mal do seu meio, e todo o Israel ouvirá e ficará com medo”.

Vejam, uma lei promulgada pelo Senhor. O filho rebelde deve morrer. Os profetas jogaram com esta lei, para construírem alguns oráculos,  sobretudo o profeta Oséias. Faremos referimento a este texto como conclusão. O Senhor  promulgou esta lei, mas que coisa sucede quando o filho rebelde é o filho de Javé, é Israel? Deve morrer? Os profetas permitem-se corrigir a lei. Podemos escutar no Evangelho “Vocês ouviram o que foi dito... mas eu porém lhes digo” (Mt 5,21ss). Jesus corrige a lei até à plenitude. Os profetas de Israel  permitem-se  corrigir a lei. Corrigir a lei, no sentido de portá-la à sua plenitude. E um dos primeiros a fazer este trabalho é Oséias.

Vejamos Os 11,2. “Quando Israel era um menino, eu o amei. Do Egito chamei o meu filho”. Ainda esta vez, vejam como a paternidade coloca-se em relação com a libertação do Êxodo. “Do Egito chamei meu filho; e no entanto, quanto mais eu chamava, mais eles se afastaram de mim”. Versículo 7 “O meu povo é difícil de se converter: é chamado a olhar para o alto, mas ninguém levanta os olhos. Como poderia eu abandoná-lo, Efraim? Como poderia  entregar você a outros, Israel? Recordem como na normativa do oráculo, os pais entregavam os filhos rebeldes aos anciãos da cidade. “Como haveria de entregar você a outros, Israel?”

 Depois vem uma frase muito bela de Oséias: “O meu coração salta no meu peito, as minhas entranhas se comovem dentro de mim”. Vejam, a tradução fala de um coração que se comove, porém a idéia  do texto hebraico não é de compaixão, de comoção, de misericórdia. O texto hebraico fala de uma perplexidade, de uma perturbação, de um remorso de Deus, que não sabe o que fazer. O verbo utilizado RABAC, quer dizer girar-se, “o meu coração se gira, é revoltado dentro de mim”. Vejam, Deus luta dentro de si. É uma imagem muito bela. Deus não sabe o que fazer com este filho. Obviamente é uma metáfora para falar de Deus, porém é a grande preparação para dizer que Deus tomará uma decisão no confronto do povo. Oséias fala de uma luta no interior de Deus. Uma luta de Deus com si mesmo, um verdadeiro combate interior do Senhor. Deus é conhecedor da fraqueza do filho e reage generosamente diante dele, próprio porque o Senhor, como diz o v.9   “não é um homem, mas é Deus”. E portanto, pode permitir-se não simplesmente de ceder o perdão no lugar da raiva, como nas decisões humanas, mas de integrar a totalidade do agir divino no confronto do homem como amor incondicional. Não é uma simples decisão, em um momento particular.

Segundo Oséias é uma decisão existencial de Deus. “Não me deixarei levar pelo ardor da minha ira”.. Vejam, para preparar esta decisão do Pai, Oséias apresenta antes uma luta no interior de Deus e finalmente no v.9 “não me deixarei levar pelo ardor da minha ira, não vou destruir Efraim. Eu sou Deus, e não um homem. Eu sou o Santo no meio de você, e não um inimigo devastador”. O refuto de Deus Pai, para destruir Israel seu filho é uma declaração solene de Deus. Declaração que através da história toma corpo. A sua relação com Israel na história não haverá mais fim por causa do pecado do povo nem da ira de Deus. É um texto belíssimo porque é a grande decisão do Pai, que corrige uma lei e age no confronto do filho, não segundo uma normativa, mas segundo a misericórdia.

No profeta Jeremias, muito vizinho também à profecia de Oséias, encontramos expressões  parecidas. Jer 31,9 –  “Serei um pai para Israel, e Efraim será o meu filho primogênito” e Jer 31,20 – “Será que Efraim não é o meu filho predileto? Será que não é um filho querido? Quanto mais o repreendo, mais me lembro dele. Por isso, minhas entranhas se comovem, e eu cedo a compaixão”. Em hebraico – vísceras, rahamim – é um termo que normalmente mete em relação com a mãe. E os profetas utilizam, para falarem da paternidade de Deus. Um Deus que é Pai-Mãe no confronto de seu povo. Um Deus que, solenemente, decide de não destruir o seu filho. Uma relação que permanece salva para sempre, apesar da rebeldia e do pecado do povo. “Não destruirei o meu filho”. E o povo pode, portanto invocar Deus na certeza de encontra Nele um Pai, desejoso sempre de salvá-lo.

Nos momentos de aflições, Israel pede ao Senhor de recriá-lo, de recomeçar a história. Vimos como no AT vem preparada a imagem do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um Pai, que é Pai em virtude de uma obra criadora, é Ele a origem da nossa liberdade, da nossa verdadeira vida nascente, originária e permanente da liberdade e da vida. É um Deus que tem uma missão educativa, que nos acompanha e nos momentos de trevas nos ilumina com sua luz. É um Deus que educa o seu povo e o mete em crise e cria condições de pobreza e precariedade, para educar o seu povo e portá-lo a um mais vivo conhecimento do seu rosto. E finalmente, um Deus que decide solenemente de não destruir o filho, e de amá-lo intensamente e para sempre. Uma relação que permanecerá salva para sempre. Deus é, portanto, aquele que é Pai e Redentor, Pai e Salvador do povo. Segundo a Primeira Carta a Timóteo 2,4 “Ele quer que todos os homens sejam salvados e cheguem ao conhecimento da verdade”. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.