ABRAÃO NÃO NOS RECONHECE MAIS E ISRAEL NÃO SE  LEMBRA DE NÓS. 

JAVÉ, TU ÉS O NOSSO PAI! (Is 63,7-64,11)


P. Silvio José Báez, o.c.d

Faremos a leitura de um longo texto do profeta Isaías, que foi escolhido, porque o termo Pai aplicado a Deus, recorre no texto três vezes explicitamente e fazem também alusões à filiação de Israel, à paternidade de Abraão. Portanto, o tema da paternidade é presente neste texto. Faremos a leitura de um texto bíblico, uma coisa que não se faz sempre, porém que, por vezes é necessário. O texto é longo, como vêem. São praticamente dois capítulos de Isaías. O texto é uma oração, é uma longa oração. Talvez seja a oração mais longa da Bíblia. Não tem nenhuma oração que venha em dois capítulos. É uma oração, talvez uma das mais comovente do AT, uma longa lamentação comunitária.

A dotação deste texto mais tardio, necessita indicar talvez ao fim do exílio, depois que Israel viu o desastre nacional maior, da destruição do templo, de todas as cidades, da devastação dos campos, o fim da monarquia, o exílio em terra estrangeira. Portanto, aquele momento de crise, de noite nacional, que significou para Israel o exílio. E esta é uma oração, que é uma espécie de reflexão daquela experiência. Portanto, nesta oração, o profeta, em nome de todo o povo, exprime profundos sentimentos religiosos que emergem em um momento trágico.

A oração que leremos surge em um momento de morte. É esta a grande diferença com outras orações do AT. E talvez o primeiro ensinamento deste texto. Realmente, a característica mais notável da fé bíblica é esta: continuar a crer no Deus da vida quando provamos a morte. Vejam, é esta a fé bíblica! E esta oração é um exemplo belíssimo! Crer no Deus da vida, quando fazemos experiência da morte.

O texto é difícil, não é muito lógico. É um emaranhado de recordações do passado que se confronta com o presente; tem a confissão da culpa, tem também expressões de confiança, de pergunta, de ajuda. Portanto, como as nossas orações. Quando se reza não se organiza o pensamento de forma lógica,  deixa-se falar o coração, sobretudo quando nos encontramos em uma situação dramática. Numa situação dramática, nenhum, ao menos a maioria, não se mete a compor uma poesia. Vejam, são os sentimentos que vêem fora, não se pensa muito no estilo literário, na lógica do texto. Portanto, os exegetas se encontram diante de um texto muito difícil. É quase impossível estruturá-lo porque vem uma coisa, vem outra, tem um pouco de confusão neste texto. Como são confusas nossas orações. Vejam, é um texto muito realista.

Então, a situação em que surge esta oração: a cidade Santa, Jerusalém e o Templo se encontram ainda em ruínas. No final do texto escutaremos diversos termos  que falam da realidade, do deserto, da desolação... São imagens para falar da destruição. E uma característica a mais deste salmo, a conclusão. Não há um final feliz, como nos filmes americanos, que tudo termina bem. Vejam, esta oração não há uma conclusão. Termina com uma pergunta, uma pergunta quase trágica. É um salmo aberto. Termina assim: “Depois de tudo isto, permanecerás ainda insensível, Javé? Será que vais ficar calado e aumentar ainda mais a nossa humilhação?” É este o fim.

Então leremos o texto, que é muito lindo e  pode nos ajudar a rezar e estar em oração com nova força, nova coragem. E sobretudo, este texto é um convite a experimentar Deus no silêncio, a experimentar o Senhor na sua ausência. Na Escritura a experiência de Deus se pode fazer por presença ou por ausência. Quando o Senhor é presente se faz experiência dele. Agora quando Ele é ausente, quando tarda, se faz uma outra experiência. É uma experiência que não é menos autêntica, mas quando o Senhor tarda, deixa um espaço livre à nossa fé, para que possamos encontrá-lo mais autenticamente.

Esta oração tem duas grandes partes. A primeira é uma recordação do passado – Is 63,7-14. A oração, a lamentação inicia com o versículo 15. Vejam que o primeiro imperativo do texto é: “Olha do céu e observa da tua morada santa e gloriosa”. Antes deste v.15 existe uma longa introdução histórica, uma recordação da história salvífica, dos benefícios e da Glória do Senhor em favor do seu povo.

Iniciemos a leitura da primeira parte. A recordação do passado!

O salmista se apressa em recordar. A introdução a todo o texto é o v.7: “Vou lembrar as graças e as glórias de Javé, tudo o que Ele fez em nosso favor”. É esta a introdução! “Vou lembrar!” Este verbo é importante porque é como o título da oração, ao menos na primeira parte. Vocês sabem que na Escritura o lembrar, o recordar, não é simplesmente um processo mental, em que trás à mente um acontecimento passado. Na escritura lembrar, recordar é sobretudo reviver em nós o desejo de Deus e render presente as obras de salvação do passado. O verbo hebraico é FACAR, por isso na celebração fundamental de Israel, a Páscoa se chama SICARONE, FACAR : RECORDAR.

A oração inicia recordando. O salmista quer despertar o espírito, encorajando-o a atender ainda uma vez, a manifestação de Deus. É um apelo também ao Senhor, porque ainda uma vez realiza os antigos prodígios em favor do seu povo. Vejam a importância do recordar. Nós recebemos de Israel a recordação. A nossa liturgia não é outra coisa do que a recordação do acontecimento salvífico de Cristo. Nós o temos presente cada vez que celebramos a liturgia, a Eucaristia. A recordação! O salmista se desperta recordando, e faz apelo a Deus. É este o início!

Antes de ler o texto, digo algumas características desta primeira parte. Uma coisa interessante é a menção  do Espírito do Senhor três vezes nesta oração; a história passada é fruto da força do Espírito. Não é ainda o Espírito Santo do NT. O Espírito é expressão da força, da potência de Deus que dirige  a história, que realiza grandes obras. Grandes obras em favor de Israel. Estas obras do Espírito. E depois, o pecado de Israel que vem descrito nesta recordação do passado, é um pecado que entristece o Espírito. O verbo hebraico se pode também traduzir, fere o Espírito. É uma ferida que entristece o Espírito.

Interessante como o pecado não vem descrito em termos de moral. O pecado é rebelião contra a força de vida do Espírito. Quando Israel  peca, não faz outra coisa do que rebelar-se, não deixar-se guiar pelo Espírito. É uma apresentação do pecado muito bela, muito teológica.

Nesta primeira parte se recordam os grandes benefícios do Senhor. Vemos a rebelião de Israel como rebelião ao Espírito, contra o Espírito. Depois o recordar vem centralizado sobretudo no Êxodo. Como sabemos, a paternidade de Deus surge próprio no momento em que liberta Israel da escravidão egipciana. Este recordar vai próprio à origem. Quando desaba tudo, quando todas as nossas seguranças desmoronam, não existe outra possibilidade que tornar ao início. É isto que faz Israel. Recorda o acontecimento primordial, fundante de sua história, como tudo  começou. Porque Aquele que quis iniciar esta história, é capaz de continuá-la, de continuar a dirigir a história naquele mesmo sentido, é esta a idéia. É um convite a recordar não com saudade, mas com o desejo de andar adiante, com a recordação da origem, sobretudo do Êxodo.

Agora faremos a leitura desta primeira parte.

Nós necessitamos de coragem para falar nestes termos em um momento de desastre nacional. E haver ainda a coragem de dizer: “Ele é grande, Ele nos tratou segundo o seu amor, segundo a grandeza da sua misericórdia”. Eis, esta é a fé bíblica! O homem bíblico não espera que a crise seja superada para louvar a Deus. A verdadeira fé bíblica é esta. Recordar as obras do Senhor e reconhecer sua grandeza e a sua misericórdia em um momento em que não se compreende nada, em que tudo é desaparecido. Quando todas as cidades e vilarejos da nação são destruídos. Quando Israel é uma desolação, um deserto!

Vejam os vv. 9-10 do Cap.64: “Tuas cidades santas viraram deserto, Sião  ficou sendo um lugar solitário, e Jerusalém um lugar abandonado. O nosso templo santo e maravilhoso, onde nossos pais celebravam o teu louvor, está agora destruído pelo fogo; todas as nossas coisas preciosas foram destruídas”. É esta a fé verdadeira!

Que coisa nos ensina esta oração? Necessita não resistir a prova da morte! A fé bíblica nos lança sempre a entrar na morte, porque é próprio na morte, no silêncio, na ausência de Deus que se encontra a vida. Esta oração, a primeira lição que nos dá é esta: Não refutar a prova e a dor. Entrar, entrar na crise com grande confiança no Senhor.

Por outro lado, sabemos que a morte acontece em cada instante da nossa vida. E portanto, esta experiência do salmista, nós a provamos cada dia. Quando nos sentimos sós, quando parece que nenhum nos quer mais, quando nós mesmos temos razão para nos desprezar, quando estamos descontentes de nós mesmos e de tudo. Vejam, quando a perspectiva da morte, do falimento nos espanta, quando depois de tantos anos de cansaço, de esforço nos encontramos falidos. Neste momento  vale-nos a coragem para crer, porém é esta a fé.

Esta recordação do passado, como vimos, é sobretudo um hino de louvor à misericórdia do Senhor. No v.8 o salmista nos apresenta uma expectativa, um desejo, uma esperança do mesmo Deus: “De fato, eles são o meu povo, são filhos que jamais enganarão”. Recordemos o texto de Isaías: “Eu eduquei meu filho, mas eles se rebelaram contra mim”. O Senhor, no início, fez uma Aliança com Israel e a expectativa de Deus, era, “este povo será meu filho para sempre e não me enganarão mais”. Porém, o povo se rebelou. O pecado entristeceu seu santo Espírito, aquela força que guiava o povo na história.

É esta a primeira parte da oração. Uma imagem sobre a história da salvação. A Bíblia nos ensina quanto é bom recordar. Recordar aquilo que o Senhor fez por nós. Reler continuamente a nossa história, a nossa vocação. Prender consciência também da experiência de miséria, porque esta recordação nos permite olhar em face a realidade. É isto que faz o salmista!

Andemos agora à segunda parte. Ela inicia com o v.15. Nesta 2a parte o salmista, em nome de todo o povo, invoca o Senhor como Pai. A imagem paterna porém, vem preparada já na 1a parte. Olhemos o v.9: “Ele os resgatou com amor e compaixão, tomou-os e carregou-os em todos os dias do passado”. Estes filhos da Aliança, são carregados pelo Senhor. Provavelmente é um referimento ao deserto, portanto, à história de Israel. A imagem do Pai que porta os filhos para protejê-lo do perigo, do cansaço. O salmista já na 1a parte afirmou que o Senhor carregou Israel para formá-lo, defendê-lo, educá-lo. O Pai!

Leremos o 1° versículo da lamentação, quando a memória do passado vem confrontada com a situação presente. “Olha do céu e observa da tua morada santa e gloriosa: onde estão o teu ciúme e poder, o teu coração comovido de compaixao?”Esta é a grande pergunta do homem de fé no momento da contradição. Onde? Onde estás? Outros salmos exprimem esta contradição: “Até quando Senhor?” “Por que?” É esta a oração, talvez a mais dramática, porém a mais autêntica. Porque a pessoa impelida somente pela fé, de uma parte reconhece que Deus é ausente, porém de outra parte, reconhece que Deus está presente, que Deus existe! Esta dupla face da oração, do lamento, é importante. Pensemos em Jó, no profeta Habacuc e tantos salmos. Quando o salmista diz “onde estás?”, este é um testemunho que Deus não fala, que Deus é ausente. Porém, é ao mesmo tempo  testemunho da fé. Se continua a crer, que o Senhor existe e é capaz de tornar a agir em favor do povo. Se utiliza obviamente de imagem espacial: “Deus habita no céu e de lá observa a terra. Olha do céu a terra e a observa. Onde está o teu ciúme, a tua potência, o teu coração comovido e a tua compaixão?

O salmo 113 é um salmo de louvor que começa assim: “Louvem, servos de Javé, louvem o nome de Javé! Seja bendito o nome de Javé, desde agora e para sempre. Do nascer do sol até o poente, louvado seja o nome de Javé! Javé se eleva sobre todos os povos, sua glória está acima do céu! Quem é igual a Javé nosso Deus, que se eleva em seu trono, e se abaixa para olhar a terra? Ele ergue da poeira o fraco e tira do lixo o indigente...” Um Deus tão grande e misericordioso que se inclina ao mais baixo da história. Um Deus que está a olhar com ternura o mais baixo da história, o indigente, o pobre, a estéril. Do mais alto do céu, Deus é assim grande que deve inclinar-se para olhar. Se inclina para olhar o céu, ainda mais a história. Esta imagem é belíssima, um Deus que está a olhar, a olhar com ternura, com interesse, com misericórdia a história da humanidade. É esta a oração! O Senhor olha do céu! É verdade que o céu é mais alto, é mais alto o lugar, a tua santa morada.

Assim começa a lamentação, uma oração belíssima para pedir ao Deus santo, transcendente, imensamente grande de inclinar-se. Este ato de inclinar-se é um ato de misericórdia! E Deus o faz de boa vontade. Sobre a história e também sobre o mais baixo da história. No fim do v. 15, “não fiqueis insensível”. Esta tradição é muito fiel. O verbo hebraico é muito belo. O verbo hebraico é HABAC, é um verbo que não significa insensibilidade, quer dizer: contener-se. Se encontra somente três vezes nos profetas. Nesta lamentação e em um texto de Isaías cap.42,14 e se encontra também na história de José. Agora vejamos o capítulo do Gênesis para que possamos compreender este verbo. É muito belo quando aplicado a Deus. Um Deus que faz força a si mesmo para não agir. Ele queria agir em favor do povo, porém se contêm. Assim vê o povo. Um Deus que queria fazer alguma coisa, porém não o faz, faz força a si mesmo. Uma luta no interior de Deus, como aquela de Oséias.

Vejamos Gn 43,30-31 – José chora e faz força para não chorar e Gn 45,1 – José não pôde mais se conter. É este o vero habac.

Para o salmista, o fato de que o Senhor parece refutar o seu povo, parece que refutava Israel, que não existia mais, que tarda, que se distancia, que não se sente. Onde é a tua misericórdia? O Senhor se contêm, faz força a si mesmo para não agir.

Este mesmo texto se encontra em Is 42,14. Faz referência ao tempo do exílio. São palavras de Javé: “Há muito tempo estou calado, permaneci quieto e agüentei (eis aqui o verbo habac. O tempo do exílio é o tempo em que Deus se contêm, fez força para não agir). Agora vou gritar como a mulher que dá a luz, vou gemer e suspirar”. Vejam, as duas etapas da história de Israel.

Voltemos ao nosso texto. Chegamos à parte da invocação de Deus como Pai. Por que o salmista diz “Senhor, não fiques insensível, vai, torna como antes! V.17 “Volta atrás, por amor dos teus servos... converte-se!” v.16 Não forçar-te a insensibilidade, porque tu és o nosso Pai, pois Abraão não nos reconhece mais”. O filho vem reconhecido pelo Pai, os seus pais. Abraão não é mais capaz de reconhecer os seus filhos. É verdade, Abraão é o pai na fé, o primeiro dos patriarcas, porém está morto, não tem condições de salvar o povo. Israel não se recorda de nós. Portanto, todos os apoios humanos são desmoronados, são desaparecidos. “Javé, tu és o nosso Pai”. Vejam, em um momento de morte, em um momento de desastre nacional, o salmista faz apelo à parentela, entre Deus e Israel, uma parentela indestrutível. O Senhor é sempre o Pai do povo, apesar da rebelião  e o pecado de Israel. Deus continua a ser o Pai do povo. Dois progenitores, Abraão e Israel, são mortos. Tem um abismo inválido, que separa dos viventes. Por isso, eles não são capazes de vir em ajuda dos seus descendentes. O seu pedido é ineficaz.

 Deus, em vez, sempre vivo e Pai da origem do povo, se mostra tal ainda hoje, em cada momento da existência do povo. “Tu és nosso Pai”. Este versículo é uma crítica fortíssima à tradição. A tradição é útil, obviamente, porque nos ajuda a encontrar sempre as raízes da fé, as raízes históricas, nos recorda que Deus é uma realidade porque se  revelou a nós, através de nossos pais, porém a tradição pode tornar-se também um perigo terrível, quando substitui a força de Deus. Neste texto o único Pai é o Senhor. “Tu és nosso Pai”.

As instituições, as tradições não servem pra nada, se tu Senhor não vem em nossa ajuda, não tem possibilidade de vida. “Tu Senhor, tu és nosso Pai”. E ajunta, “desde sempre, Nosso Goel, Redentor”. Goel é um termo importante porque é aquele que toma a responsabilidade de alguém, é o parente mais vizinho. “Tu és o nosso Goel e não tem um outro”. Esta é a grande invocação.

“Javé, por que nos deixas desviar dos teus caminhos? Por que fazes nosso coração endurecer, e assim, perdermos o teu temor? Volta, por amor dos teus servos e das tribos que são a tua herança. Por um momento nossos inimigos se apoderaram do teu povo santo e pisaram o teu santuário. Estamos como outrora, quando ainda não nos governavas, quando sobre nós o teu nome nunca fora invocado”. Estas palavras são terríveis! Senhor, se tu não age mais, Israel não existe! Somos como aqueles, quando ainda não nos governavas. E o Cap. 63 termina com esta oração, esse desejo: “Quem dera rasgasses o céu para descer!” O desejo que o Senhor, que parece longe da sua santa morada do céu, desça. Que os céus se abram e Deus se manifeste com toda a sua potência.

Os versículos que vêem depois são uma oração, pedindo uma teofania, uma manifestação de Deus potente. Uma manifestação do Senhor, para que destrua os inimigos. As montanhas representam aqui, tudo aquilo que é grande, tudo que é importante, no universo, se pede tudo, diante da tua manifestaçao Senhor. Quando se fala  das montanhas, se exprime o radical mutamento da história de Israel. O desejo de uma manifestação de salvação. No Antigo Israel, o Senhor se manifesta para salvar o seu povo. É este o desejo que se exprime: “Diante de ti as montanhas se derreteriam”. As montanhas que representam um pouco o elemento mais sólido da criação.

Cap.64,1-3   Se trata somente de haver confiança Nele. Vejam como a fé deste orante há uma lógica. No início a recordação, agora a certeza que Deus pode manifestar-se ainda, basta ter confiança Nele e esperar pacientemente o intervento divino. V.4  agora começa uma outra parte final. O pecado do povo. Em um primeiro momento, segundo a concepção semítica , se atribui a Deus o bem e o mal e Deus é irritado , ou responsável do pecado do povo. Porém, em um segundo momento o povo reconhece a verdadeira razão da sua situação, da sua culpa.

 Deus de fato,  rompeu a sua relação com Israel porque a nação estava imersa no pecado, nenhum se dirige mais a Deus, para invocar o seu socorro, nenhum procura refúgio Nele, porque nenhum tem confiança. Portanto, uma nação completamente estranha a Deus. Leremos o texto. É a parte penitencial: “Acontece, porém, que ficaste irritado conosco, porque há muito tempo pecamos contra ti e fomos rebeldes. Todos juntos nos tornamos uma coisa imunda, a nossa justiça é como roupa suja, nós todos murchamos como folhas, e nossos pecados como vento nos arrastaram. Ninguém invocava o teu nome, nem se esforçava para apoiar-se em ti, pois escondestes de nós a tua face e nos entregavas ao poder da nossa culpa”.

A conseqüência do pecado são descritas mediante quatro imagens: coisa imunda, roupa suja, folhas e vento. Quatro imagens belíssimas! Uma coisa imunda, uma roupa suja, vento, folhas murchas, porque o povo se  distanciou da nascente de água verdadeira. Israel é transformado em uma coisa inconsistente, está para desaparecer totalmente. Esta é a confissão do pecado, realista, sincera, humilde. O v. 7 é lindo! É verdade tudo isso, “mas agora, Javé, tu és o nosso pai”. Eis a esperança do povo! Este nosso vínculo, esta nossa relação, não pode ser destruída, “tu és o nosso pai; nós somos o barro, e tu és o nosso oleiro; todos nós somos obra de tuas mãos”. É verdade, nós pecamos, porém, do fundo do coração surge uma saudade do Pai, da origem, um desejo de recomeçar tudo do início. “Tu és o nosso pai”. Vejam, a imagem da argila, do artesão que modela a argila, que dá forma é o Deus criador no início, Gn 2, que  criou o homem com suas mãos. É como dizer, Senhor, olha que é possível recomeçar! Podemos iniciar do fim esta história, é verdade, nós fomos  rebeldes,  pecamos, porém, tu és ainda nosso Pai. Aquele que nos  criou.

Recordemos que para Israel, a paternidade de Deus faz referência ao início da história do povo. Não é tanto o criador, como o libertador. Tu deste início a esta história, tu  fizestes  uma Aliança conosco, sois o Pai, possamos iniciar de novo. “Não fiques irado para sempre, Javé, nem fiques lembrando sempre a nossa culpa. Vê! Todos nós somos o teu povo. Tuas cidades santas viraram um deserto, Sião ficou um lugar solitário, e Jerusalém um lugar abandonado. O nosso templo santo e maravilhoso, onde nossos pais celebraram o teu louvor, está agora destruído pelo fogo; todas as nossas coisas preciosas foram destruídas”.

E assim chegamos à conclusão: “Depois de tudo isso, permanecerás ainda insensível, Javé? Será que vais ficar calado e aumentar ainda mais a nossa humilhação?” Insensível – o verbo é habac – continuarás ainda a fazer força para não agir em nosso favor? Continuarás ainda a demorar, a conter sua misericórdia, Senhor? Então, porque havemos recordado o passado, somos conhecedores ainda da tua paternidade, havemos invocado a tua misericórdia, reconhecemos nossas rebeliões. Senhor, continuarás ainda a fazer força? Calarás ainda, e nos humilharás até o fim? Um jogo de palavras em hebraico que é muito interessante aqui, no fim. O verbo humilhar, em hebraico se diz Anar e responder se diz Anar – o mesmo som. Vejam, Senhor, calarás e nos humilharás? Quando o normal seria dizer – Veja Senhor, calarás e nos responderais, porém o autor joga com este termo que pode significar, responder e humilhar. “Vais ficar calado e aumentar ainda a nossa humilhação?” Em vez de responder, que é belíssimo porque é um texto literário, aqui joga com a possibilidade da língua. O drama é que, em vez de responder, que seria o normal, sobretudo de um Pai misericordioso, Anar – aquilo que experimentamos é a humilhação. Mais tu permaneces em silêncio, mais nós experimentamos  a humilhação. Mais tu és longe, mais nós experimentamos a morte. Continuarás Senhor, a conter-se, continuarás ainda a permaneceres em silêncio? Continuarás ainda a humilhar-nos até o fim? E assim conclui o salmo. É como dizer, colocamos tudo nas mãos misericordiosas de Deus, e fazemos um ato de confiança grande no Pai misericordioso. Ele deverá responder e nós confiamos Nele.

           

            Que coisa nos ensina este salmo?

 

1. A experiência da miséria e da morte não é necessariamente negativa segundo a Bíblia. A experiência do exílio, que é o paradigma da morte e da miséria do povo, permite a Israel de olhar em face a situação em que se encontra e de rebelar-se. Não podemos continuar assim! Invoca o Pai! Esta é a primeira coisa que nos ensina o salmo. Muitas vezes necessita andar no fundo do poço, fazer a experiência da miséria, para olhar em face à situação de morte em que nos encontramos e poder assim rebelar-se. Aquilo que fez o filho pródigo. O primeiro ensinamento deste salmo.

2. Na experiência do exílio, do profundo do coração, emerge o pressentimento da saudade de um Outro, de um Outro que possa nos acolher e fazer-nos sentir-se amados, ao de lá de tudo e apesar de tudo. Isto nos ensina o salmo. Olhem que este salmo é a saudade do Pai, a saudade daquele que pode nos acolher, e nos fazer sentir-se amados. Tu és o nosso Pai! Aquilo que fez o filho pródigo.

3.Um terceiro ensinamento desta oração centrada na figura, na imagem paterna: A imagem do Pai, é a imagem de alguém a quem devemos confiar sem reservas, seguros de não sermos decepcionados. Tu és o nosso Pai. O texto, algumas vezes, também faz referência às vísceras, rahamim, às vísceras maternas. Portanto, a imagem paterna é a invocação da origem, do ventre, da casa. É a invocação daquele rosto, a que podemos olhar sem nenhum temor, na certeza de sermos sempre amados, acolhidos, purificados, perdoados. Esta é a imagem do Pai. A saudade e o desejo de Israel no exílio. Um desejo que, se transforma em realidade. O Pai é aquele que é foi revelado em Cristo Jesus. Alguém em quem podemos nos apoiar, como a rocha que não desaba, como  o coração que palpita em nós. Um amor santo, acolhedor, capaz de transformar tudo e de iniciar tudo do fim, o Pai. Israel experimenta este desejo e esta saudade, a mesma que todos nós carregamos em nossos corações e que Jesus nos ensinou a invocar este Deus como o nosso Pai; sobretudo quando tudo  desaba, quando não existe  mais nenhum apoio, resta ainda o Pai. Em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo.